29/08/2008

VERDADE E MENTIRA

Passando pelo lago existencial, fiquei muito surpreso com a imagem que vislumbrei. Surpreso ao ponto que me fez pensar na infância.
Meus pais sempre me falaram da diferença entre as duas. Diante do que vi no lago, lembrei da infância e da família.
A imagem me incomodava, pois traia minha razão... Convicções! Reflexão? Interrogação? As duas estavam ali tão próximas, mas eram tão diferentes. As duas juntas num mesmo lugar. Uma cena curiosa. Reflexões e mais reflexões. Mas não era confusão. Pura realidade.
Elas estavam nuas. Mergulhavam e agitavam as águas do lago da existência como jamais alguém tenha visto antes. Pura sorte a minha? Pura obra do acaso? Claro que não. Encontrá-las nesse lago foi conseqüência de muita inquietação.
Mas afinal quem era a verdade e quem era a mentira naquele lago de tanta sofreguidão..., desolação e reflexão? Estavam tão juntas, a verdade e a mentira, que geraram tanta confusão. Nuas, pouca distinção.
Mais tarde me veio a grande surpresa. Enquanto uma se deliciava, distraída, nas águas do lago, a outra, sorrateiramente, roubou-lhe as roupas. A verdade estava distraída, distraída continuou. Sem perceber a grande loucura que tal cena provocou: a mentira que se vestira das roupas de verdade e que se dissipou.
A verdade, sozinha e sem roupas, percebendo a grande loucura saiu às pressas atrás das roupas que a mentira roubara. Sem a verdade, o lago da existência ficou vazio. Numa perseguição implacável a verdade disputava com a mentira pessoas, casas, lugares. A batalha não foi fácil. A mentira entrava pelas casas vestidas de verdade. Mas a verdade era impendida porque estava nua.
Parei. Pensei: era mais fácil aceitar uma mentira vestida com roupas de verdade do que aceitar uma verdade nua.
CRISDINEI SOARES
Meu prof de filosofia

25/08/2008

Relato pessoal

A tarde estava radiante naquele dia, e eu como sempre enfurnada dentro de um supermercado a comprar coisas mais dispensáveis que necessárias. Preciso de um descanso. Lembrei que ali perto havia uma pracinha pouco movimentada, e muito convidativa. Não resisti. Fiz minhas compras o mais rápido que pude, dessa vez só o essencial (juro!), e logo estava acomodada num banquinho de madeira.
A princípio tudo foi me parecendo muito fantasioso, a tarde que caía, e a tranqüilidade e sossego misturados aos risos de algumas crianças que brincavam ali perto.
Foi quando ele chegou. A sua presença contrastando com aquele local de puro encantamento. Um ser ofuscante. Fiquei a observá-lo ali do outro lado da rua.
Devia ter por volta de 45 anos, talvez menos. Usava roupas surradas e de aspectos repugnantes, a barba por fazer e olhar perdido. No que estaria pensando? Centenas de fagulhas passaram pelo meu cérebro. Tantas coisas haveriam de passar na cabeça de um... Mendigo?! Como devo chamá-lo, se todos são tão iguais de aspectos e condições que se parecem com animais não domesticáveis, e que por isso, não necessitam de um nome específico?!
Mas esse homem deve ter eira e beira, mas anda perdido entre os detritos. Será que ele escolheu essa vida miserável ou é conseqüência de escolhas erradas? Só sei, que esse homem sobrevive pela necessidade, pois já não existe brilho nos seus olhos miúdos. Não existe paz naquele corpo quase inerte de andarilho. Já não existe amor, já não existe dor. Não existe nada. Apenas o instinto. Porquê Meu Deus?
Nesse momento não sinto piedade, só resignação. Apenas a resignação pela vida. Vida miserável que nos subjuga a rélis mortalidade; vida que nos leva a ser como ele, mesmo que interiormente. Homens sujos, homens perdidos, incapazes de dar um basta nesta vida, rélis vida miserável de mortais.
As compras rolam pelo chão; minhas lágrimas descem no rosto humanizado.
Danna

18/08/2008

ALMA

"Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é.
Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem
- pois que nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela -
apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo
uma doçura primeira de quem não tem medo:
come ás vezes na minha mão.
Seu focinho é úmido e fresco.
Eu beijo seu focinho.
Quando eu morrer, o cavalo preto vai ficar sem casa e vai sofrer muito.
A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa
não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave.
Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome.
Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridadade, ele vai.
Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai.
Aviso também que não se deve temer o seu relinchar:
a gente se engana e pensa que é a gente que está relinchando de prazer ou de cólera,
a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez."

Clarice Lispector
UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES

14/08/2008

COMO É MESMO O NOME?

Levou o manequim de madeira à festa porque não tinha companhia e não queria ir sozinho.

Gravata bordeaux, seda. Camisa pregueada, cambraia. Terno riscado, lã. Tudo do bom. Suas melhores roupas na madeira bem talhada, bem lixada, bem pintada, melhor corpo. Só as meias um pouco grossas, o que porém se denunciaria apenas se o manequim cruzasse as pernas. Para o nariz firmemente obstruído, um lenço no bolsinho.

No relógio de ouro do pulso torneado, a festa já tinha começado há algum tempo.

Sorridentes, os donos da casa se declararam encantados por ter ele trazido um amigo.

— Os amigos dos nossos amigos são nossos amigos — disseram saboreando a generosidade da sua atitude. E o apresentaram a outros convidados, amigos e amigos de nossos amigos. Todos exibiram os dentes em amável sorriso.

Recebeu o copo de uísque, sua senha. E foi colocado no canto esquerdo da sala, entre a porta e a cômoda inglesa, onde mais se harmonizaria com a decoração.

A meia hilaridade pintada com tinta esmalte e reforçada com verniz náutico exortava outras hilaridades a se manterem constantes, embora nenhuma alcançasse idêntico brilho. Abriam-se os transitórios vizinhos em amenidades que o compreensivo calar-se do outro logo transformava em confidências. Enfim alguém que sabia ouvir.

Relatos sibilavam por entre gengivas à mostra e se perdiam em quase espuma na comissura dos lábios. Cabeças aproximavam-se, cúmplices. Apertavam-se as pálpebras no dardejado do olhar. O ruge, o seio, o ventre, a veia expandida palpitavam. O gelo no uísque fazia-se água.

A própria dona da casa ocupou-se dele na refrega de gentilezas. Trocou-lhe o copo ainda cheio e suado por outro de puras pedras e âmbar. Atirou-se à conversa sem preocupações de tema, cuidando apenas de mantê-lo entretido. Do que logo se arrependeu, naufragando na ironia do sorriso que lhe era oferecido de perfil. A necessidade de assunto mais profundo levou-a à única notícia lida nos últimos meses. E nela avançou estimulada pelo silêncio do outro, logo úmida de felicidade frente a alguém que finalmente não a interrompia. No mais frondoso do relato o marido, entre convivas, a exigiu com um sinal. Afastou-se prometendo voltar.

O brilho de uma calvície abandonou o centro da sala e coruscou a seu lado, derramando-lhe sobre o ombro confissões impudicas, relato de farta atividade extraconjugal. Sem obter comentários, sequer um aceno, o senhor louvou intimamente a discrição, achando-a, porém, algo excessiva entre homens. Homens menos excessivos aguardavam em outros cantos da sala a repetição de suas histórias.

Não acendeu o cigarro de uma dama e esta ofendeu-se, já não havia cavalheiros como antigamente. Não acendeu o cigarro de outra dama e esta encantou-se, sabia bem o que se esconde atrás de certo cavalheirismo de antigamente. Os cinzeiros acolheram os cigarros sem uso.

Um cavalheiro sentiu-se agredido pelo seu desprezo. Um outro pela sua superioridade. Um doutor enalteceu-lhe a modéstia. Um senhor acusou-lhe a empáfia. E o jovem que o segurou pelo braço surpreendeu-se com sua rígida força viril.

Nenhum suor na testa. Nenhum tremor na mão. Sequer uma ponta de tédio. Imperturbável, o manequim de madeira varava a festa em que os outros aos poucos se descompunham.

Já não eram como tinham chegado. As mechas escapavam, amoleciam os colarinhos, secreções escorriam nas peles pegajosas. Só os sorrisos se mantinham, agora descorados.

No relógio torneado do pulso rijo a festa estava em tempo de acabar.

As mulheres recolhiam as bolsas com discrição. Os amigos, os amigos dos amigos, os novos amigos dos velhos amigos deslizavam porta afora.

Mais tarde, a dona da casa, tirando a maquilagem na paz final do banheiro, dedos no pote de creme, comentava a festa com o marido.

— Gostei — concluiu alastrando preto e vermelho no rosto em nova máscara —, gostei mesmo daquele convidado, aquele atencioso, de terno riscado, aquele, como é mesmo o nome?








(Do livro "O leopardo é um animal delicado", de Marina Colasanti)