18/08/2008

ALMA

"Existe um ser que mora dentro de mim como se fosse a casa dele, e é.
Trata-se de um cavalo preto e lustroso que apesar de inteiramente selvagem
- pois que nunca morou antes em ninguém nem jamais lhe puseram rédeas nem sela -
apesar de inteiramente selvagem tem por isso mesmo
uma doçura primeira de quem não tem medo:
come ás vezes na minha mão.
Seu focinho é úmido e fresco.
Eu beijo seu focinho.
Quando eu morrer, o cavalo preto vai ficar sem casa e vai sofrer muito.
A menos que ele escolha outra casa e que esta outra casa
não tenha medo daquilo que é ao mesmo tempo selvagem e suave.
Aviso que ele não tem nome: basta chamá-lo e se acerta com seu nome.
Ou não se acerta, mas, uma vez chamado com doçura e autoridadade, ele vai.
Se ele fareja e sente que um corpo-casa é livre, ele trota sem ruídos e vai.
Aviso também que não se deve temer o seu relinchar:
a gente se engana e pensa que é a gente que está relinchando de prazer ou de cólera,
a gente se assusta com o excesso de doçura do que é isto pela primeira vez."

Clarice Lispector
UMA APRENDIZAGEM OU O LIVRO DOS PRAZERES

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